Paulo Nogueira Batista Jr. diz que Ocidente lida mal com seu declínio e vê risco de grande crise financeira
Economista afirma que Ocidente perdeu a confiança do Sul Global e pode precipitar crise que abrirá espaço para a nova arquitetura financeira internacional
247 – O economista Paulo Nogueira Batista Jr., ex-diretor executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI) entre 2007 e 2015 e vice-presidente fundador do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), o banco dos BRICS, afirma que as instituições financeiras sediadas em Washington entraram em declínio acelerado e já não são reformáveis.
Em longa entrevista ao professor Glenn Diesen ele compara o modelo do FMI à experiência dos BRICS e defende a construção de uma nova moeda de reserva, ancorada em países do Sul Global, como resposta à crise de confiança no dólar.
Logo no início, Paulo resume a mudança de época: segundo ele, o Ocidente quer manter o FMI e o Banco Mundial “no século 20”, enquanto os BRICS e outros países em desenvolvimento lutam para construir instituições do século 21, “mais representativas, mais inclusivas e menos politicamente enviesadas”. Ao longo da conversa, ele descreve o processo de desdolarização, critica a “arrogância” da liderança ocidental e alerta para o risco de uma nova crise financeira que pode desencadear a ruptura da ordem monetária atual.
Crise de governança no FMI e congelamento das reformas
Questionado sobre a estrutura de governança do FMI, Paulo Nogueira Batista é taxativo ao afirmar que as reformas estratégicas foram bloqueadas há mais de uma década. Ele lembra que houve algum avanço entre 2008 e 2010, no auge da crise financeira do Atlântico Norte, quando os países avançados ficaram “mais abertos a mudanças”. Mas, depois disso, nada de essencial foi adiante:
“Desde então, nada aconteceu. Por 15 anos, o FMI tem estado congelado, assim como o Banco Mundial, em termos de mudanças fundamentais de governança.”
Para ele, o problema não é apenas o desenho formal de votos e cotas, mas a maneira como Estados Unidos e Europa, que são os principais acionistas, utilizam o fundo como instrumento geopolítico:
“O Ocidente tem lidado muito mal com o seu declínio. (...) O bloco ocidental tem se agarrado aos seus privilégios e ao poder no FMI e o tem usado, cada vez mais, como arma política.”
Nesse contexto, ele afirma que as potências ocidentais se recusam a atualizar a instituição para refletir a nova correlação de forças da economia mundial, o que empurra o Sul Global para alternativas próprias, como o Novo Banco de Desenvolvimento e, no futuro, uma nova moeda de reserva.
“O Ocidente armou tudo”: dólar, euro, Swift, FMI e Banco Mundial
Um dos pontos mais contundentes da entrevista é a descrição da “armamentização” das principais engrenagens do sistema financeiro internacional. Paulo sintetiza em uma frase:
“O Ocidente armou tudo. Armou o dólar, armou o euro, armou o sistema de pagamentos Swift, armou o FMI, armou o Banco Mundial.”
Segundo ele, essa estratégia significa duas coisas: primeiro, que o Ocidente “está disposto a fazer qualquer coisa”; segundo, que está disposto a “destruir a credibilidade e a reputação das instituições que criou e controla”.
Ele observa que, em vez de preservar o papel sistêmico de suas moedas e organismos multilaterais, Estados Unidos e Europa passaram a tratá-los como armas em disputas geopolíticas, especialmente contra potências emergentes como a China e contra países do Sul Global que buscam maior autonomia.
“O dólar tem um inimigo político: os Estados Unidos”
Paulo Nogueira Batista afirma que o próprio comportamento de Washington minou a confiança na moeda norte-americana. Em uma das frases mais fortes da entrevista, ele diz:
“Agora temos uma situação muito peculiar. (...) O dólar tem um grande inimigo político. Esse inimigo são os Estados Unidos da América. Eles minaram a confiança no dólar.”
Ele lembra que, no passado, o dólar era aceito e confiável, ainda que os Estados Unidos já atuassem como "hegemon" intervencionista. A diferença estaria no estágio atual de declínio relativo e na disposição de usar o sistema financeiro como arma, inclusive com congelamento de reservas, sanções e ameaças abertas contra países que buscam desdolarizar.
Segundo Paulo, a situação chegou ao ponto em que Washington tenta “coagir outros países a usar o dólar”, uma inversão em relação ao período pós-Segunda Guerra, quando a moeda norte-americana era adotada “naturalmente” pelos mercados.
Desdolarização, ouro e o debate sobre uma nova moeda de reserva
A partir da perda de confiança no dólar e na “moeda satélite” euro, a desdolarização se tornou um tema central nos debates do Sul Global. Paulo diz que escreve de forma sistemática sobre o assunto desde 2023 e defende que desdolarizar vai muito além de liquidar transações comerciais em moedas nacionais:
“A desdolarização, em última instância, significa caminhar para uma nova moeda de reserva. Por várias razões, não acredito que o dólar continuará tão importante quanto foi. Ele e o euro tendem a declinar.”
Ele observa que, diante do colapso de confiança, grandes bancos centrais passaram a aumentar suas reservas de ouro. Ao mesmo tempo, a moeda chinesa (renminbi) avança, mas encontra limites: Pequim hesita em assumir os custos e riscos de tornar sua divisa uma verdadeira moeda global, com plena conversibilidade e apreciação cambial.
Paulo relata que esteve recentemente na China e saiu com a impressão reforçada de que os chineses são cautelosos em mudar um modelo que tem dado resultados:
“Em futebol, nós dizemos no Brasil: você não mexe em time que está ganhando. Por que a China mudaria um modelo econômico que tem sido tão bem-sucedido nas últimas décadas?”
Por isso, ele conclui que a saída duradoura deve ser construída em grupo, provavelmente com países do Sul Global liderados pelos BRICS, para criar uma nova moeda de reserva baseada em um cesto de moedas, nos moldes dos Direitos Especiais de Saque (SDR) do FMI, mas sem controle norte-americano.
BRICS não são força “revolucionária”, mas precisam ir além do status quo
Ao falar sobre o papel dos BRICS (agora ampliados) na construção dessa nova arquitetura financeira, Paulo sublinha que o grupo é, por natureza, cauteloso:
“Os BRICS não são uma força revolucionária. Nunca foram. São muito cautelosos, sempre muito cuidadosos. Todos eles, até a Rússia, que está na prática em guerra com a Otan.”
Ele defende que qualquer iniciativa prática na área financeira não precisa incluir todos os membros desde o início. Segundo o economista, o que se deve construir é algo “Brics-cêntrico”, aberto a países de fora do bloco, mas sem paralisia por discordâncias internas, como as da Índia ou de países muito dependentes do FMI, como Egito e Etiópia.
Paulo também observa que um dos grandes desafios é o peso relativo da China em qualquer arranjo multilateral: se a nova moeda de reserva for organizada de forma que Pequim concentre poder excessivo, os demais países do Sul Global temerão trocar a hegemonia norte-americana por uma hegemonia chinesa.
China entre hegemonia e multipolaridade
A disputa em torno da futura ordem mundial passa, inevitavelmente, pelo papel da China. Paulo Nogueira Batista lembra que há duas leituras em debate: a de analistas que veem Pequim como futura hegemonia tradicional, à maneira norte-americana, e a de quem acredita que a China pode liderar uma ordem multipolar de “primeiro entre iguais”.
Ele afirma que Brasil, Índia, Rússia e outros países grandes do Sul Global não aceitarão simplesmente substituir a dominação dos Estados Unidos pela de Pequim:
“Países como Brasil, Índia e Rússia são grandes o bastante para perceber que não queremos trocar seis por meia dúzia, ou seja, trocar Estados Unidos e Alemanha por China e Alemanha.”
Para o economista, a chave está em saber se a China manterá uma postura de cooperação, respeito à autonomia alheia e ênfase no Sul Global, ou se cederá à tentação de agir como “um novo Estados Unidos”. Ele relata, por exemplo, a postura outrora discreta da diplomacia chinesa, sintetizada em uma resposta de porta-voz do Ministério das Relações Exteriores:
“Perguntaram qual era a visão da China sobre liderança mundial, e ela respondeu: ‘Não é liderança, é dever’.”
Segundo Paulo, esse espírito de responsabilidade e cooperação, e não de hegemonia, é o que poderia tornar viável uma nova arquitetura financeira multipolar com participação central da China, mas sem imposição unilateral de interesses.
Declínio do Ocidente, liderança fraca e o papel de Donald Trump
Outro eixo da entrevista é o diagnóstico do declínio relativo do “Ocidente político” – sobretudo Europa e Estados Unidos – não apenas em termos econômicos, mas de qualidade de liderança. Paulo afirma:
“Nunca vi, em toda a minha vida, uma safra tão fraca de líderes políticos como a que temos hoje na Europa, com quase nenhuma exceção. O mesmo vale para os Estados Unidos.”
Ele cita a eleição de George W. Bush “não apenas uma, mas duas vezes”, e de Donald Trump também “não apenas uma, mas duas vezes”, além de líderes democratas “muito fracos e propensos a bullying geopolítico”.
Paulo chama atenção para a postura agressiva do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em relação aos BRICS. Trump já descreveu o bloco como uma “conspiração” contra os EUA e ameaçou abertamente punir países que tentem desdolarizar. O economista, porém, ressalta que há um descompasso entre a retórica e os resultados:
“Sob Trump, os Estados Unidos estão empurrando esses países uns para os outros, porque ele ataca aliados tradicionais como Europa, Canadá, Índia e México. Ele está atirando no próprio pé o tempo todo.”
Para Paulo, o Ocidente continua preso à “mentalidade unipolar” da década de 1990, embora a realidade multipolar já seja evidente. Isso ajuda a explicar decisões que ele classifica como “autoagressivas”, como a expropriação de ativos estrangeiros na Europa ou o sequestro de reservas internacionais.
Risco de nova crise financeira e “ponto de ruptura” do dólar
O ex-diretor do FMI adverte que o mundo pode estar se aproximando de um novo choque financeiro originado nos Estados Unidos ou na Europa, semelhante ao de 2008/2009, mas com efeitos potencialmente muito diferentes.
Na crise do subprime, lembra Paulo, o dólar ainda era visto como porto seguro, o que levou à “paradoxal fuga para a qualidade”, com capitais saindo de ativos de risco para títulos norte-americanos. Hoje, ele acredita que isso pode não se repetir:
“Acho que o dólar não exercerá mais esse papel de porto seguro se uma crise explodir. Se a bolha nos mercados de ações e ativos dos Estados Unidos estourar, teremos fuga do dólar em direção ao ouro e ao renminbi.”
Nesse cenário, a China teria de decidir como lidar com uma onda massiva de entrada de capitais em sua moeda, com risco de valorização excessiva e volatilidade financeira – exatamente o que destruiu a estabilidade de muitas economias da América Latina quando seguiram o receituário liberal do chamado “Consenso de Washington”.
Por isso, Paulo defende que os países do Sul Global discutam desde já “planos de guerra” econômicos, à semelhança do que fazem militares com diferentes cenários de conflito:
“Podemos estar arriscando um grande crash. Vamos colocar as ideias na mesa agora, porque, se uma crise eclodir, o mundo inteiro estará correndo atrás de alternativas.”
Confisco de reservas russas e ruptura com o princípio da propriedade privada
Na parte final da entrevista, Paulo Nogueira Batista critica duramente o congelamento e as discussões sobre eventual confisco das reservas internacionais da Rússia pelos países ocidentais, para financiar a Ucrânia. Ele lembra que a mera decisão de congelar reservas em 2022 já foi um choque profundo para o sistema:
“O congelamento das reservas russas já é uma violação de direitos de propriedade. Se você as confisca, legal ou ilegalmente, e tenta usá-las para apoiar a Ucrânia, estará levando isso a outro nível.”
Ele destaca que essa política não se limita ao dólar, mas também atinge o euro, que passou a ser visto como “moeda satélite” dos Estados Unidos em termos geopolíticos. Casos como a expropriação de ativos estrangeiros sem compensação adequada, incluindo decisões tomadas por autoridades europeias, reforçam a percepção de que o Ocidente “destrói os próprios princípios” que dizia defender – como Estado de direito, segurança jurídica e respeito à propriedade privada.
Para Paulo, trata-se de sinal claro da deterioração da liderança ocidental:
“Mostra o grau de decadência da liderança ocidental que eles pensem em fazer isso e em seguida façam, sem avaliar as consequências, sem pensar no próximo passo, no que aconteceria se a China fizer o mesmo.”
Ele conclui que o mundo entra em um período de “turbulência o tempo todo”, em que países do Sul Global – entre eles os BRICS e seus parceiros – precisam “apertar os cintos” e se preparar para choques financeiros, geopolíticos e institucionais. Nesse ambiente, a construção de uma nova ordem monetária multipolar, menos sujeita à arma das sanções e confiscações, deixa de ser mera opção estratégica e se converte em necessidade de sobrevivência para grande parte do planeta.



